sábado, 29 de junho de 2019

Patriarca Moy Yat e Eu

(Patriarca Moy Yat)

Não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o patriarca Moy Yat. Mas sinto que, graças a meu Si Fu e suas histórias, o conheço.
(Si Taai Gung, Si Fu e Si Suk Marcelo Abreu.)


Sempre que possível Si Fu nos conta algumas histórias que viveu com Si Taai Gung; algumas são bem gostosas de ouvir, outras, tristes. Em todas me sinto como se estivesse lá. Gosto muito quando ele conta que certa vez teve de montar uma bicicleta ergométrica que Si Taai Gung havia ganhado de um aluno. Si Fu estava com um irmão Kung Fu, meu Si Suk Marcelo Abreu, na casa de patriarca Moy Yat, nos Estados Unidos. Si Taai Gung não havia pedido para que eles montassem, mas ela estava lá. Pelo que entendi, Si Fu achou ter visto um olhar significativo do Si Taai Gung para o presente, mas estava em dúvida. Si Suk Abreu estava certo de que era para montar, e ficaram um tempo decidindo o que fazer. Por fim, optaram por montar. Como estava tarde, tentaram fazer o mínimo de barulho possível. 

Quando amanheceu, a bicicleta estava montada. Si Taai Gung desceu, vestido de Tong Jong, viu a bicicleta, deu um sorriso e retornou para o quarto. Voltou com uma roupa esporte. Pedalou uma vez, pediu uma foto e foram tomar café.
Não se sabe se usou a bicicleta em um ato de gentileza pelo esforço deles ou se já esperava que aquilo acontecesse e a foto era planejada, mas o fato é: ele sabia que a vida Kung Fu ultrapassa gerações e que um dia iria beneficiar alguém que na época não fazia ideia do que é Ving Tsun. Si Taai Gung tinha tanta certeza que ensinou isso a seus discípulos.

Esta história me inspira, talvez por em algumas ocasiões eu ter a oportunidade de estar com Si Fu em sua casa ou pela possibilidade de ter que tomar uma decisão. Mais que isso, tomar uma decisão que gere algo positivo.

(Si Taai Gung e Si Fu)

Certa vez pedi para Si Fu me contar a recordação que ele guardava com mais carinho dele com Si Taai Gung. Sua resposta foi de certa vez que eles caminhavam pelo condomínio, um caminhar casual, com conversas triviais. Mas mesmo assim foi um momento prazeroso. Há pouco tempo vivi uma caminhada parecida com Si Fu, quando estávamos a caminho de sua casa. Si Fu nesta ocasião me mostrava como fazia para trabalhar um aspecto sutil do Kung Fu, a habilidade de se aproveitar da situação, sendo esta positiva ou não.

Acho que de certa forma Si Fu tenta trazer para nós experiências que viveu com Si Taai Gung, e justamente por conta destas experiências me sinto mais humano.


sábado, 22 de junho de 2019

Posicionamento

(Mestre Sênior Julio Camacho, Núcleo Barra)


As facas são instrumentos que servem para matar. Também por isso eu entendo que seu uso acontece no final do sistema. É preciso ter muita experiência em simbolizar o combate para transmutar a natureza de morte em algo simbólico e a partir daí ter um estudo de alto nível da morte simbólica.


(Estudo de Baat Jaam Do, Núcleo Barra)


Quando estamos estudando as facas, fica clara a necessidade de usá-las como extensão do braço. Todo o restante do corpo deve ficar por trás. Neste nível não se hesita. A cada gesto há uma “morte”, seja do seu oponente ou a sua, por isso é importante estar em guarda.


(Mestre Sênior Julio Camacho)


Nesta semana tive uma experiência bastante significativa com Si Fu. Estávamos na sua antiga casa, e eu havia guardado seus documentos em uma caixa para facilitar seu transporte. Apesar de antes de guardá-los eu ter enviado um WhatsApp para ele questionando se queria que assim eu fizesse, não aguardei sua resposta. Achei que por conta da urgência de sua mudança não deveríamos perder tempo. Para mim, naquela hora aguardar sua resposta seria perder tempo.

Quando Si Fu chegou em sua casa, questionou onde estava seu passaporte. Eu o havia guardado em uma caixa que se misturou às outras. Em outras palavras, não sabia onde estava.

Mais uma vez Si Fu me pergunta onde estava o passaporte. Suando frio, eu não conseguia falar. As palavras embolavam em minha boca. No fundo, estava mais preocupado em explicar o que havia acontecido do que responder à pergunta dele. Claro que ele não queria ouvir a explicação. Ele me perguntou mais algumas vezes onde estava o passaporte, e eu não sabia responder e também não sabia expressar que não sabia responder. 

Esse processo durou alguns minutos. Para mim foi uma eternidade, mas o mais marcante foi sua postura. Eu e Si Fu estávamos de pé, Si Fu me olhando fixamente, e eu a todo momento desviava o olhar. Seu corpo estava relaxado apesar de sua expressão dura, eu transbordava tensão até pela voz. Suas mãos estavam baixas, as minhas entrelaçadas e postadas à frente, numa atitude clara de separação. Queria fugir dali.

Suas mãos baixas me marcaram. Para mim é óbvio que estávamos “lutando”. Luta diz respeito a golpear e ser golpeado. Si Fu estava inteiro naquele cenário, disposto a “matar” ou “morrer”, e eu só queria que aquilo acabasse.

Essa, sem faca alguma nas mãos, foi minha maior experiência de Baat Jaam Do, tanto por ter de arcar com a consequência de minha decisão quanto por minha postura diante da consequência.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Sigamos

(Patriarca Moy Yat e Mestre Senior Julio Camacho, década de 90)

Caminhar junto tem uma espécie de mágica: é preciso entender como não andar rápido ou devagar demais, estar atento à dinâmica do caminho para que não ocorra nenhum acidente e, sobretudo, desenvolver Kung Fu.


 (Com mestre Senior Julio Camacho, 2019)


Neste dia Si Fu estava saindo do Mo Gum e perguntei se poderia acompanhá-lo até a portaria. Tive uma resposta positiva, por isso recolhi todas as suas coisas e descemos. Si Fu, que estava com pressa, viu que o Uber demoraria 15 minutos para chegar. O trânsito estava caótico. Voltamos para o Mo Gum e deixamos tudo que havia de mais valor e que não era essencial para aquele momento. Si Fu me fez uma pergunta que fez com que tudo mudasse: “A agenda do núcleo permite que o André fique sozinho por um tempo?” Nós iríamos andando para sua casa. Partimos para a portaria novamente, a passos apressados e com um clima bem descontraído. Si Fu me explicava que Kung Fu é a habilidade de se adaptar a qualquer situação e não se vitimar. No fundo Si Fu mais que me explicava: eu estava vendo na prática como isto acontece.

Cruzamos o canteiro e as pistas que separam o condomínio O2 do CasaShopping em 5 minutos, sempre na diagonal, pelo que percebi, crucial para evitar assaltos, e a passos rápidos. Nossa conversa ainda girava em torno da importância de se aproveitar da situação. Si Fu me explicou que só por ter havido uma situação adversa tivemos a oportunidade de ter mais tempo juntos, conhecer um caminho que nunca havíamos feito e, como já dito, não se vitimar. Afinal de contas o Uber existe há pouco tempo, e é claro que o avanço tecnológico facilita, mas quando ele não é capaz de agilizar devemos lembrar que a tecnologia nos ajuda a viver, mas não nos faz viver.

Cruzamos o CasaShopping por um caminho escuro, contudo seguro. Ao sair por uma porta lateral, que também descobrimos na hora, topamos com uma passarela. Em outras palavras, em 17 minutos estávamos do lado da Av. Ayrton Senna que dá acesso ao Recreio dos Bandeirantes.

Continuamos andando. O trânsito agora estava intenso, mas se movendo. Si Fu mais uma vez pesquisou no aplicativo do Uber. O valor até sua casa já estava menos que a metade da última vez que pesquisou e o tempo de chegada também reduzido, mas ainda assim Si Fu decidiu continuar caminhando, até porque, ele comentava, ainda não estamos em um ponto seguro para parar e aguardar.

Si Fu imaginou que um caminho à nossa direita que dava acesso a uma rua com vários hospitais poderia ter passagem para o Recreio. Justamente por ter tantos hospitais, não poderia ser uma rua sem saída. Mais uma vez ele estava certo. Paramos em frente a um dos hospitais e, mais preocupado com minha volta do que satisfeito com o tempo do Uber, ele resolveu aguardá-lo. Mais tarde ele me mandou uma foto de dentro do Uber, com o trânsito à sua frente totalmente livre.


(Com Mestre Senior Julio Camacho)

Essas semanas têm sido bem pesadas para mim, com tensão e pouco sono. Meu contato com Si Fu é diário e Si Fu parece que não cansa.

Sempre tive um respeito muito grande pelo Si Fu a ponto de muitas vezes me esconder por medo de falar na frente dele ou ter uma atitude inadequada. Por isso, a tensão quando Si Fu está por perto é demasiadamente grande. Nada disto é impeditivo para a construção do meu Kung Fu. Conhecendo Si Fu, digo que isto é até dispositivo, pois meu medo de errar é tamanho, que acabo errando coisas básicas, o que comprometem todo o processo. Mas essas semanas, apesar do cansaço, foram um pouco diferentes. Broncas eu tomei, várias e desconfortáveis, mas sobretudo fiz algo que acho que nunca fiz por completo: entreguei resultado.

Essa caminhada noturna me pareceu um marco — palavras leves, sorriso nos olhos de ambos, e ainda assim aprendi Kung Fu, sem desconforto. Quem sabe, espero que sim, eu virei a tão comentada “chave”.

  













terça-feira, 11 de junho de 2019

Pintando

(Com Mestre Senior Julio Camacho e Clayton Quintino. Condomínio Península, 2019)

Sempre gostei de pintar. Lembro de ainda criança acompanhar meu pai nas pinturas de nossa casa, sempre com muita disposição, mas pouca habilidade. O que resultava em algumas broncas e um mau humor que durava dias.

Não sei dizer qual foi a primeira vez que pintei o Mo Gum, mas afirmo: a maior parte do meu Kung Fu foi construído por meio de um pincel.


(Patriarca Moy Yat)


Em várias das minhas experiências de pintura tive a oportunidade de ter Si Fu perto. Na verdade, ele estava me orientando diretamente. Isto contribui para um certo desenvolvimento técnico e, mais que isso, uma legítima experiência marcial.

Quem já teve a oportunidade de pintar sabe do problema que estou falando. Preparar o local antes de tudo é fundamental. Entender a medida certa de diluição e saber empunhar o material são componentes que ajudam a garantir uma boa pintura. O passo a passo não é difícil decorar, a dificuldade é interiorizar todos esses processos de modo que aconteçam naturalmente e, portanto, possam extrapolar a pintura fazendo parte da maneira da pessoa agir.


(Com Mestre Senior Julio Camacho, Si Mo e irmãos Kung Fu. Condomínio O2, 2019.)


A maneira como Si Fu me orienta está carregada de “espírito marcial”. Para mim isto significa que cada gesto deve ter consequência equivalente ao cenário de guerra. Por isso, a cada gota de tinta que cai no chão desprotegido, a cada material perdido, seja por desleixo ou incompetência, Si Fu chama minha atenção de maneira muito enérgica. Não há espaço para erros, por menores que sejam. 

Lembro das sensações que vivo nestes momentos. Uma delas é um medo tão grande que me trava, e consequentemente faz cair drasticamente meu desempenho. Quando Si Fu percebe minha fraqueza ele “golpeia” cada vez mais forte, não me dando espaço nem mesmo para respirar. Nesses momentos sei que ele percebeu minha fraqueza, por isso levanto a cabeça e sem pensar continuo tentando como se minha sobrevivência dependesse de não desistir. Neste momento já não importa se estou com medo, se tenho ou não habilidade para executar a tarefa. Neste momento eu entendo que o que tenho que fazer é o meu melhor. 

O curioso é que à medida que o tempo passa, cada vez menos tomo bronca, e tenho a sensação clara de que não preciso delas para encontrar em mim meu “espírito marcial”.