sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Arte

(Núcleo Barra)

Quando estava na escola tinha muita dificuldade com recorte e colagem. Já nas primeiras séries, sabendo desta dificuldade eu fazia grupo com quem era mais habilidoso, assim minha inabilidade podia ser encoberta.

Quando acabou esta etapa do colégio descobri outras inabilidades, desta vez era gramática, Matemática ou qualquer manifestação da dita ciência exata. Mas, o Colégio já havia me ensinado a lidar com isso, então, mais uma vez me apoiei em colegas mais habilidosos. Não sei dizer se pegar corona na habilidade alheia foi a lição mais importante que a escola me ensinou, mas com certeza foi assim que vivi por muitos anos. 

Ao concluir o Ensino Médio minha alegria era imensa, finalmente poderia viver minha vida sem ter de lidar com minhas pontuais dificuldades. Claro, onde mais eu teria de recortar papel? onde mais eu precisaria ter um pensamento critico ou escrever e me expressar de maneira coerente e correta?

Eis que me aprofundo no Kung Fu, e, como que por castigo umas das minhas primeiras tarefas era preparar um Hung Bau. Não acreditei, isto de novo? 

Lembro que minha mão tremia ao recortar a cartolina tamanho o desconforto. O pior é que desta vez não havia ninguém para fazer por mim. Finalmente enfrentei, de certa forma sozinho, este desafio.

Com mais de 10 anos de experiencia no Kung Fu já fiz alguns Hung Bau, nenhum deles saiu como eu gostaria, mas tenho certeza de que todos foram melhores que o seu anterior. 

(Mestre Senior Julio Camacho, Núcleo Ipanema)

Acredito que tenha chegado a um momento em que minha habilidade em fazer recorte seja suficientemente boa, nesta foto vemos minha próxima etapa de refinamento.

Recortar, colar cartão em papel imantado e coloca-lo no quadro para mim não é uma dificuldade, mas a dimensão artística desta atitude tenho dificuldade de acessar. Por isso, Si Fu faz questão de me ajudar. Diferente da escola de arte onde o ensinamento está em apreciar o belo, meu aprendizado está em observar e desenvolver a expressão artística através de um ambiente de crise, por isso somos praticantes de Arte Marcial e não apenas arte.

No dia desta foto eu dormi mal, meu pensamento em muitos momentos era o desejo que o dia logo acabasse para que eu pudesse descansar. Quando Si Fu chegou ao Núcleo me cumprimentou e foi direto para o quadro, me chamou e perguntou o que estava errado ali. 

Não sabia responder para mim não havia nenhum problema, mas, ao mesmo tempo sabia que Si Fu estava perguntando por conta de algum motivo.

Acho que estes são os piores momentos que vivo em minha jornada marcial, estar diante de algo com Si Fu ele apontar ou sugerir a percepção de uma falha e eu não entender sobre o que ele está falando gera uma sensação de impotência.

O problema que Si Fu se referia era a forma como os cartões estavam dispostos, não havia ali harmonia, eles simplesmente foram colocados no Quadro. Mas, qual a relevância disto?


(Mestre Senior Julio Camacho, Núcleo Barra)

Fazer o que foi pedido exatamente como solicitado, as vezes, requer um nível de Habilidade, fazer o que foi pedido com o cuidado de refinar todo o processo ou a melhor maneira de faze-lo é Kung Fu. 

Me parece que estes conceitos não sejam difíceis de entender mas difíceis de serem executados. Tudo o que conto através de minhas palavras foram aprendidos através da escuta, mas, sobretudo por experiencia prática. 

Lidar com nossa falta de habilidade e imperícia é a matéria prima da arte marcial. Muitas vezes fico fraco, com raiva, com medo, pequeno. Estes são sentimentos que por si não tem relevância, o que de fato importa é: apesar de todo desconforto, o que vou fazer? Chorar ou ir embora é uma opção? 

Se for, ótimo. Assim o farei. Sabendo que na verdade o quadro, ou a "agressividade" do Si Fu são um espelho e como tal refletem o que sou. Ao chorar ou fugir estou me dizendo que sou uma criança ou um fujão. Será isto mesmo que quero ser?




quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Agressividade

(Mestre Senior Julio Camacho, Núcleo Barra.)

Certa vez Si Fu estava falando sobre agressividade e usou como exemplo um diamante. A pedra é a matéria-prima, mas o trabalho feito neste material é que resulta em um fim valioso.

O mesmo acontece com a arte marcial: a agressividade é a matéria-prima de todo artista desta área. Saber direcionar essa agressividade para o objetivo a ponto de canalizar toda a energia para aquele fim e depois agir como se nada tivesse acontecido, em meu entender, é Kung Fu.


(Mestre Senior Julio Camacho, Núcleo Barra)

Há pouco tempo tive a oportunidade de experimentar esta agressividade de maneira contundente e, sobretudo, particular.

Si Fu havia me pedido que guardasse alguns pertences em minha casa. Eles estavam em uma mala, e eu deveria devolvê-la tão logo guardasse os itens que estavam lá dentro.

Desci com Si Fu para retirar a mala de seu carro, peguei-a e perguntei em quanto tempo ele precisaria dela de volta. Neste momento vi em seus olhos a matéria-prima da arte marcial: agressividade pura e muito bem direcionada. Só pelo olhar fiquei em estado de alerta e pensei: “Perdi. Agora o soco entra.”

“Guilherme, quanto tempo você precisa para desfazer uma mala?”

Nervoso, respondi que uma semana. Logo em seguida achei que era melhor ter ficado quieto, e no segundo seguinte tinha certeza de que não adiantaria nada me calar. Si Fu, sem medir o tom de voz, começou a sessão de “pancadas”:

Como que um dos Diretores de Núcleo precisa de uma semana para devolver uma mala?

Que tipo de estrategista precisaria de tanto tempo para fazer algo tão simples?

Como cuidar de um Núcleo se não posso nem mesmo desfazer e devolver uma mala?

Fui encolhendo a cada palavra. Quanto mais respondia, mais pancada tomava. No fundo eu sabia que Si Fu não queria que eu respondesse, mas que eu desenvolvesse o espírito marcial necessário para executar minha “missão”.

Em dado momento, Si Fu pegou a mala, jogou-a com toda força de volta no carro, bateu a porta, entrou e deu partida no motor. Neste momento eu acordei.

“Si Fu, me devolva a mala.”

Não sei se Si Fu tinha dimensão do desconforto que eu tive ao vê-lo jogando a mala com tamanha agressividade no carro, mas o fato é que aquilo me despertou — começava a brotar em mim a agressividade necessária para levar e devolver a mala rapidamente.

(Mestre Senior Julio Camacho)

Naquele dia Si Fu não me devolveu a mala, e fiquei amargurando aquela cena por alguns dias com uma sensação de impotência enorme. Não pude deixar de me perguntar por diversas vezes o que estava fazendo no Ving Tsun.

Tempos depois lá estava ela no vestiário parada em um canto. Si Fu passou do meu lado e disse:

“Trouxe a mala que me pediu.”

Dois dias depois ela estava de volta, vazia, as coisas que Si Fu deixou sob minha guarda muito bem cuidadas em minha casa. Desta vez, foi este o diamante que Si Fu me ajudou a moldar.